sexta-feira, 19 de outubro de 2012

GESTOS NA CIDADE

Ipu :Fotografia do acervo do Prof. Francisco Mello

Na metáfora do andarilho em “Caminhadas pela Cidade”, Michel de Certeau propõe o caminhar como ato de enunciação e dialetiza o conceito de lugar. O andarilho ultrapassa “lugares praticados”, metamorfoseando o espaço e ressemantizando a escrita da cidade. Certeau apresenta o conceito de não-lugar sustentando, juntamente com o antropólogo Marc Augé, que se a mobilidade e o deslocamento parecem animar a trama urbana também proporcionam, em contrapartida, a destituição de trocas expressivas entre sujeitos. A mobilidade urbana constitui, na contemporaneidade, o semblante que mimetiza o conceito de movimento buscando legitimar desejo e vida em não-lugares como aeroportos, autoestradas, viadutos, vias ferroviárias, lugares que apenas possibilitam passagem de um espaço a outro. Cercado de espaços por todos os lados – espaço de lazer, espaço de jogos, espaço público – vive-se na cidade não a experiência de satisfação de uma conquista espacial, mas a experiência de anonimato e isolamento.

Segundo Augé, os “não-lugares” constituem hoje “a mensuração do nosso tempo” e implicam na ilusão de um saber total sobre o cotidiano da cidade. Os “não-lugares” presentificam a estranheza e a experiência de choque em que o sujeito “se sente espectador sem, verdadeiramente, se importar com a natureza do espetáculo”. Denunciando as nomeações e os rótulos que se espalham pela cidade, Augé enfatiza os hiatos semânticos presentes nessas nomeações (Cidade – Universitária, Cidade – Jardim, Cidade – Histórica, Cidade – Serrana) como tentativas de esvaziamento e negação do lugar. “Esses nomes dão lugar a que nos lugares se introduza o não-lugar; transformam-nos em passagens.”

É no campo do imaginário excessivo que o contexto urbano se constitui conduzindo os sujeitos a se conformarem com as nomeações de tal modo que, como denuncia Augé, quem nunca foi a Marraqueche ou ao Taiti, se contente com a imaginarização desses lugares pela simples leitura ou som dos nomes e com a ilusão de proximidade.

Ocorre que o cotidiano dos sujeitos na cidade não implica tão somente a atuação de um imaginário galopante. A relação sujeito – cidade excede às tentativas de completude e acumulação de saber. Os sujeitos, assim como a cidade, são igualmente constituídos de desejos. Em Freud, desejo é o wunsch – aspiração, voto, desejo permeado pela tessitura do enigma de um saber não-sabido. Não se confunde, desse modo, com a necessidade de sono, fome, sede, etc. No desejo humano está inscrito o voto de busca da primeira experiência de satisfação carregando, ao mesmo tempo, retorno e descontinuidade realçando a aparição do impossível.

Assim, na relação do sujeito com a cidade, não se trata apenas de ordenar passagens e vias ou de estabelecer uma lógica de funcionabilidade que venha tamponar a poética de deriva. O desejo da cidade é o “Das Ding” freudiano, objeto para sempre perdido, significante que não guarda relação direta com a coisa representada, lugar de inscrição de um vazio fundamental, da hiância enquanto condição de toda invenção possível.

As possibilidades de enunciação da cidade, suas ressonâncias, semblantes e vertigens estão inscritas de forma expressiva no movimento de cada sujeito que dissemina gestos no cotidiano e na memória urbana. O grande desafio contemporâneo é, portanto, encontrar meios de recusar a imobilidade de corpos inertes e obedientes e propor, em contrapartida, outra mirada ao cotidiano da cidade. Vai-se o objeto, permanece o gesto.

Iná Maria Nascimento Gomes Silva